novembro 2019 Archives
Troquem o pauteiro

É preciso trocar o pauteiro do Brasil. É importante e necessário discutir previdência, reforma tributária, redução/manutenção de direitos trabalhistas, privatização ou não de estatais, medidas contra a criminalidade.
Mas não dá pra discutir oportunidade ou não de um novo AI-5, não dá para achar razoável reprimir - até com violência - manifestações que sequer existem. Não dá pra relativizar direitos de qualquer cidadão, não dá pra questionar garantias constitucionais.
É preciso refazer a pauta, recolocá-la nos trilhos. Uma ditadura, explícita ou disfarçada, não pode entrar na discussão. Temos que ter cuidado para não naturalizarmos o absurdo, o grotesco, o inegociável.
Deixem que berrem

"Os esperançosos e revoltados que esperneiem, que berrem, que profetizem a não realização da Copa, que façam todo o alarde possível. Pelo visto, ainda têm expectativas de mudanças, não os invejo, azar o deles. (...) Diante do desespero, dos planos de fuga, das atualizações de saldos bancários na Suíça e naquelas ilhotas de nomes esquisitos, você exigirá tranquilidade, saberá fazer valer cada ruga acumulada no rosto e imobilizada por sucessivas e mensais injeções de botox. (...) Deixem que esses putos berrem, se esgoelem. Deixem que quebrem, joguem pedras, queimem, que pensem que venceram, que mudaram, que trocaram. Deixem que subam a rampa, que discursem. Todos terão que vir à Casa, serão obrigados a limpar os pés, aprenderão a usar talheres, a escolher vinhos. Se orgulharão do uso dos diferentes garfos e facas, nos agradecerão a gentileza de recebê-los, adorarão os vinhos vagabundos de rótulo francês, rebotalho do rebotalho, que beberão estalando a língua no palato. Sei que será assim porque foi assim comigo. (...) E o babaca aqui lambia suas palavras, chupava seus argumentos, gozava com as suas conclusões. Eu aprendi com você, me lambuzei de você, eu virei você. Acabei retirado do meu trabalho, da minha rua, fui esvaziado, desidratado. Você fez comigo o que, em breve, vocês farão com esses milhões que se abraçam nas ruas."
Trechos do romance 'Uma selfie com Lenin', que lancei em 2016, pela Record.
A tabelinha de Paulo Scott com Laurentino Gomes

Emendei Marrom e amarelo, do Paulo Scott, com Escravidão, do Laurentino Gomes. Os dois livros foram comprados ao mesmo tempo, vieram na mesma sacola - desde então, não param de conversar, falam o tempo todo da tragédia do desterro e da escravidão de milhões de seres humanos, um processo determinante na formação do nosso país, do povo brasileiro.
A escravidão nas Américas teve cor, um componente fundamental, transmitido de geração em geração. Mais do que uma referência aos antepassados e lembrança do terror histórico, a cor negra que, com maior ou menor intensidade, marca os corpos de quase todos os brasileiros, funciona como alerta - impede que esqueçamos o que houve, o que foi feito e o tanto que ainda precisa ser cobrado e conquistado.
Somos, quase todos, herdeiros de um paradoxo, descendentes de escravizados e de seus antigos donos. Alguns (ou muitos) de nossos antepassados foram chicoteados/violentados por outros de nossos ancestrais. É impossível dizer que não somos, individualmente, resultado de um ou de muitos estupros. Durante séculos tentamos diluir essa tragédia, negá-la, uma tarefa facilitada para os mais amarelos e tornada quase impossível para os marrons.
A negação só aprofundou o impasse e a injustiça. Basta andar nas ruas, dar uma olhada nas estatísticas. A escravidão e o racismo afetam a vida de todos nós, impedem qualquer projeto de construção de uma sociedade que tenha alguns mínimos denominadores em comum. Ao longo de 500 anos, apostamos na exclusão, no isolamento, no disfarce, na construção de guetos. Deu no que deu.
Precisamos discutir nosso passado, lidar com nossos paradoxos e encaminhar saídas plurais e abrangentes. Precisamos nos conhecer melhor - a leitura dos dois livros é importante para isso -, precisamos parar de nos negar.
Uma outra Antígona

Na noite deste domingo, ao sair da apresentação de 'Antígona', encontrei uma vizinha na plateia, sobrinha de um desaparecido político, jovem sequestrado e morto pela ditadura.
O encontro representou um novo e improvisado ato da peça, que trata da punição aplicada a Antígona, mulher que desobedeceu o rei de Tebas e ousou tentar enterrar o corpo do irmão.
A mãe do desaparecido - ela morava ao meu lado, no apartamento onde vive a neta - foi como Antígona; ao longo de muitos anos procurou pelo filho, foi humilhada, desrespeitada. Morreu com mais de 90 anos sem saber o que foi feito do corpo do filho.